terça-feira, 10 de julho de 2012



Mitos Raciais de uma Sociedade.

Dois manifestos dividiram a sociedade brasileira: um contra a definição de cotas para negros e índios nas universidades e a reserva de vagas para minorias no serviço público; outro, a favor. Nos dois manifestos, impressionam a falta de argumentos e a ausência de propostas alternativas dos adversários das duas políticas de ação afirmativa, a não ser a reafirmação da universalidade dos direitos da igualdade de todos perante a lei.

Esse é um principio fundamental da nossa Constituição. Mas, sendo ela um documento datado do século XX, não é um princípio Vazio de conteúdo social. No século XVIII, a igualdade de todos perante a lei representava um grande avanço político quando a burguesia liberal lutava contra o Estado absoluto, era a luta de uma classe média em ascensão contra uma aristocracia montada em cima de privilégios legais.

Depois disso, porém, o mundo avançou politicamente. Percebeu-se que não bastava à igualdade perante a lei, era preciso também à igualdade de oportunidade entre as classes sociais e entre as raças.

No nosso País, apenas se preocupávamos apenas com a igualdade social. Alguns avanços foram alcançados nesse campo, embora o Brasil continue sendo um que detém a mais taxa de desigualdade do mundo. No plano racial, porem, fomos incrivelmente displicentes. Apoiados no fato de que samos um país mestiço e, de fato, somos, supusemos que existia aqui uma democracia racial, ou quase. Não a temos nem quase. Caetano Veloso estava certo quando concordou que a democracia racial no Brasil era um mito e acrescentou: “Mas um belo mito”.

De fato, é um belo mito, no sentido de nos fazer orgulhosos de nossa mestiçagem e de nos levar a rejeitar toda discriminação racial. Mas a rejeição é teórica. Na pratica, a discriminação No Brasil é fortíssima, conforme todas as pesquisas comprovam. Se o Brasil é injusto no plano social, é ainda mais no racial. Nas universidades, por exemplo, há apenas 2% de negros estudantes e apenas 1% de negros docentes, embora eles constituam 45% da população brasileira.

E por essa razão que há alguns anos surgiu o movimento no sentido de implantar no Brasil iniciativas de ação afirmativa. Quando o movimento começou, os nacionalistas de ocasião disseram que isso era invenção americana; alguns hesitaram em lembrar o triste argumento do branqueamento gradual; outros apontaram as dificuldades em distinguir as raças no Brasil; a maioria dos contrários argumentou que a definição legal de raça só agravaria a situação. Por quê? Porque tornaria as diferencias racial, que no Brasil são muitas vezes imprecisas claras e, que por essa razão,poria em cheque a “ Paz Racial” ou a “harmonia natural” que formaria as  relações de raça no país. Vemos, assim, que há outras versões do mito da democracia racial: versões que colocam a ordem, transmutada em paz e em harmonia, no centro da questão. O conservadorismo de nossa sociedade reaparece assim com toda a força.

Além dos argumentos liberais da igualdade perante a lei, também os argumentos da defesa da ordem ressurgem no debate. A paz social é necessária, mas não é perpetuando a injustiça que ela será alcançada.

Não basta que se almeje "um Brasil no qual ninguém seja discriminado", como diz o manifesto contra. É preciso ter a coragem que 30 universidades brasileiras já tiveram e começar a adotar ações afirmativas contra a discriminação. As ações afirmativas que estão sendo propostas não são apenas justas: são razoáveis. Elas não ameaçam a ordem, apenas fazem avançar modestamente a justiça.

Têm razão os subscritores do manifesto a favor quando afirmam que o documento contra "parece uma reedição, no século 21, do imobilismo subjacente à Constituição da República de 1891: zerou, num toque de mágica, as desigualdades causadas por séculos de exclusão e racismo e jogou para um futuro incerto o dia em que negros e índios poderão ter acesso eqüitativo à educação, às riquezas, aos bens e aos serviços acumulados pelo Estado brasileiro".


Valentim Santos
Professor, Historiador e Sociólogo.

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